Entrevista Cátedra Martius: 'precisamos conectar o mundo da academia com o mundo da prática'
O que ainda não se sabia àquela altura é que a pesquisadora a assumir o desafio colocaria no centro de sua atuação um conceito tão potente para refletir sobre as crises da magnitude que a sociedade tem presenciado: saúde planetária. Ao olhar para o bem-estar do planeta de forma diretamente conectada à saúde de todas as espécies e ecossistemas, a Dra. Laura Kemmer coloca em prática sua formação multidisciplinar. Em seu trabalho como cientista urbana, a catedrática conecta teorias e métodos da Antropologia, da Geografia e da Teoria Feminista, como fez em seu doutorado, intitulado “Bonding. Infraestrutura, Afeto e Emergência de Coletividade Urbana” e conduzido na HafenCity University Hamburg. Convicta de que para “enfrentar os desafios relacionados às múltiplas crises climáticas que afetam um mundo extremamente desigual, precisamos de pesquisas que conectem disciplinas entre as ciências humanas, sociais e naturais”, Laura Kemmer chegou à USP em abril de 2023 com muitos planos e projetos, que já começam a dar frutos sob a forma de conferências, aulas e workshops – naturalmente unindo diferentes disciplinas. Nesta entrevista, a professora compartilha um pouco sobre sua trajetória, os projetos de pesquisa atuais e como orienta o trabalho da cátedra em prol da busca pela saúde planetária.
Como a sua formação e experiência profissional influenciam sua atuação como catedrática na USP?
Laura Kemmer: Eu me formei como pesquisadora no campo dos estudos urbanos e, nesse caminho, passei pelas ciências políticas, relações internacionais, estudos latino-americanos, antropologia e geografia urbana para agora chegar às ciências sociais na USP. Eu amo e abraço essa interdisciplinaridade. Para estudar a cidade, precisamos de conceitos e métodos que nos permitam capturar tanto a organização social, quanto a condição física, espacial e ecológica do urbano. De forma similar, para enfrentar os desafios dos nossos tempos relacionados às múltiplas crises climáticas que afetam um mundo extremamente desigual, precisamos de pesquisas que conectem disciplinas entre as ciências humanas, sociais e naturais. E, para além disso, precisamos conectar o mundo da academia com o mundo da prática – isso é algo que aprendi durante minhas experiências profissionais na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e na ONU Habitat, mas que aplico muito também no contexto dos meus atuais projetos, em que colaboramos com arquitetos e designers, profissionais de saúde urbana, movimentos sociais, artistas, etc.
Quais são seus principais projetos de pesquisa atuais?
Laura Kemmer: Estou envolvida em três projetos. Faço parte do grupo de estudos “ReScaling Global Health. Human Health and Multispecies Cohabitation on an Urban Planet” (2023-2026), da Berlin University Alliance, em que desenvolvo um pensamento planetário sobre saúde tanto como prática de cura humana, quanto de outras espécies, ecossistemas, águas e solos. Nesse projeto, colaboro com os meus colegas Antônio Saraiva (IEA-USP) e Tatiana Camargo (UFRGS), do grupo Saúde Planetária Brasil. Desde o começo de 2023, coordeno também, com Jamie Baxter (TU Berlin), o projeto “Desenhar com o Planeta” (Iniciativa South Designs), que busca criar laços entre o que chamamos “zonas de luta ribeirinhas” entre Jacarta, Berlim e São Paulo.
Estou muito feliz também de integrar a partir de janeiro de 2024 o projeto “Ecologias Evidenciadoras Urbanas”, financiado pelo Global Center of Spatial Methods for Urban Sustainability (DAAD exceed) e coordenado pela minha colega da sociologia (USP-FFLCH) Fraya Frehse. Reuniremos estudantes da USP, representantes de hortas alimentares e medicinais urbanas, e integrantes do sistema de saúde pública (SUS) da cidade para aprendermos sobre métodos de “pesquisas multiespécies” e melhorarmos o diálogo entre academia e prática no campo da saúde urbana.
Como lidar com os desafios da sociedade contemporânea em busca de um futuro mais sustentável em sala de aula?
Laura Kemmer: Atualmente ministro um curso na USP que propõe uma releitura de conceitos desenvolvidos na teoria feminista, como cuidado, reparo/reparação e cura, para entender as possibilidades de traduzir esses conceitos em pesquisas sobre sustentabilidade em um mundo urbanizado. Eu acredito que mais do que “grandes teorias” e “soluções” do estilo “top-down”, precisamos estudar melhor como a sustentabilidade já é uma prática de pessoas que lidam com os efeitos das mudanças climáticas no dia a dia e que têm muito a nos ensinar sobre como enfrentá-los com um espírito verdadeiramente planetário. Nesse curso, meu colega Jamie Baxter e eu desenvolvemos uma técnica de “correspondências planetárias”, que promove uma troca de cartas entre os meus alunos e os do curso de “Urban Design” de Jamie, como parte do programa internacional COIL de colaboração em ensino. É impressionante como essa simples proposta gera uma experiência duradoura e uma troca realmente “curativa” entre jovens pesquisadores em Berlim e São Paulo, que vai muito além da sala de aula.
A cátedra leva o nome do pesquisador alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, que esteve no Brasil no início do século XIX. Você propõe uma releitura crítica sobre a visita dele ao Brasil. Conte um pouco sobre isso.
Laura Kemmer: Quando o climatógrafo e professor alemão Dieter Anhuf (primeiro titular da cátedra) iniciou a parceria entre o DAAD e a USP com o fim de desenvolver atividades ligadas à ecologia e de promover o intercâmbio entre Brasil e Alemanha, a cátedra foi nomeada em homenagem a Carl Friedrich Philipp von Martius, conhecido por sua viagem de pesquisa botânica pelo Brasil entre 1817 e 1820. Alguns dias depois da minha chegada em São Paulo, me deparei numa livraria com o livro “O som do rugido da onça”, da autora pernambucana Micheliny Verunschk, que trata justamente dessa viagem, mas sob a perspectiva de uma jovem indígena do povo Miranha, levada para Munique, na Alemanha, com outras crianças indígenas, além de plantas e animais. Depois fui visitar em Munique o jazigo de von Martius e fiz uma caminhada para retraçar a breve vida dessa jovem na cidade e a carreira acadêmica que o von Martius construiu a partir da “experiência Brasil”. Essa caminhada foi organizada pela artista Frauke Zabel, que realizou várias pesquisas e performances sobre von Martius em São Paulo e Berlim. Pretendo continuar esse trabalho em 2024, envolvendo ex-titulares da Cátedra Martius, artistas e acadêmicos brasileiros e alemães que estudam von Martius, e pesquisadores que desenvolvem perspectivas críticas sobre os temas da cátedra: humanidades e sustentabilidade.
>> Para saber mais sobre as atividades da Profa. Laura Kemmer, siga o perfil da Cátedra Martius no Instagram e visite a página da cátedra no nosso site.